Do lado brasileiro, os receptadores também lucram com o crime. Podem comprar o grão contrabandeado a um preço um pouco menor do que o praticado no Brasil, a R$ 60, e revender a cerealistas por R$ 140. Para disfarçar a origem da operação, usam talões de notas "calçadas" (frias). O resultado é que a Receita Federal tem encontrado pequenas propriedades, até 15 hectares, que declaram notas de produção de soja fantásticas, incompatíveis com o seu tamanho.
— Em alguns casos, para justificar o que declaram nas notas, teriam de produzir 250 sacas por hectare, algo impossível em qualquer parte do mundo (a média no Rio Grande do Sul foi de 32 sacas por hectare neste ano) — resume Pedro Bellinaso, auditor da Receita Federal que chefia a repressão ao contrabando e descaminho ao longo de toda a fronteira noroeste do Rio Grande do Sul.
O contrabando de soja fez proliferar a montagem de rotas clandestinas de escoamento de grãos. Toda uma infraestrutura foi montada dos dois lados do Rio Uruguai para garantir a empreitada. Começa na pavimentação de estradas municipais (com substituição de atoleiros por brita), na construção de galpões para armazenamento provisório de sacas de soja e de equipamentos (moegas ou tulhas), e em espécie de depósito provisório de metal com escorregador em forma de funil, para facilitar a colocação dos grãos nos caminhões e balsas.
A Brigada Militar e as polícias Civil e Federal mapearam mais de 50 portos clandestinos improvisados pelos contrabandistas ao longo de três municípios gaúchos: Tiradentes do Sul, Esperança do Sul e Crissiumal, todos na fronteira noroeste. Mas esses atracadouros improvisados na lama podem ser muito mais que 50. O GDI esteve em 10 portos concentrados num pequeno trecho de dois quilômetros nas proximidades de Porto Soberbo, distrito de Tiradentes do Sul.
Algumas propriedades chegam a ter duas saídas clandestinas para o rio. Dali é possível assistir ao movimento incessante de caminhões carregados de soja e milho, subindo e descendo as barrancas nos dois lados do Rio Uruguai.
Em alguns pontos o atoleiro foi coberto com grossa camada de brita. O descaso dos contrabandistas em relação à ilegalidade é tanto que as sacas de grãos chegam ao porto clandestino gaúcho rotuladas em espanhol e estampadas com a frase Indústria Argentina. São retiradas por carregadores argentinos — que atuam irregularmente no lado brasileiro da fronteira —, direto das balsas para os caminhões. Ou então para carretas puxadas por tratores, quando o barro é muito. Não há preocupação em disfarçar. Os veículos são velhos, para que a perda financeira não seja muito grande, caso sejam apreendidos pela fiscalização.
— Essa fronteira é um queijo suíço, mas fazemos o possível para coibir o contrabando, com os recursos disponíveis para coibir o crime fronteiriço — ite o tenente-coronel Ailton Azevedo, comandante do 7º BPM, de Três os.
Os policiais item que os contrabandistas contam com uma rede informal de apoio nos municípios costeiros ao Rio Uruguai.
— É um fenômeno cultural. Muitos fronteiriços nem encaram contrabando como delito, se comparado ao tráfico de drogas, carros e armas. Só que os mesmos portos são usados para traficar — pondera o delegado regional da PF em Santo Ângelo, Farnei Franco Siqueira, que investiga crimes nessa parte da fronteira.
Inquéritos na PF revelam que muitas vezes os mesmos barcos usados para transportar soja carregam junto agrotóxicos proibidos no Brasil.
O crescimento do contrabando pode ser constatado a partir do aumento nas apreensões feitas pelas autoridades. A Receita Federal contabiliza 444 toneladas de soja e milho contrabandeadas apreendidas no primeiro semestre de 2023, em 82 quilômetros de fronteira que separam as três cidades costeiras do noroeste do RS da Argentina. O equivalente a 10 carretas carregadas de grãos.
Muitas dessas apreensões foram feitas pela Brigada Militar e Polícia Civil, junto à Receita Federal, no âmbito da Operação Agro-Hórus (que mira todo tipo de contrabando). Foram apreendidas também barcaças de diversos tamanhos.
A PF de Santo Ângelo, que atua na fronteira noroeste, contabiliza 45 ações nos últimos dois anos, com 89 indiciados (na maioria, presos). Dois flagrantes, em 2022, foram gigantes: um com 27 presos e outro, 16 presos.
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