Rafael Corrêa: Ainda criança eu queria ser cartunista e cineasta, desde essa época adorava criar histórias. Como a arte dos quadrinhos só necessita de uma caneta e um papel para criar mundos, aos 10 anos eu já estava fazendo minhas revistinhas. O cinema, por ser mais complexo, ficou para o segundo plano.
Em 2010, fui diagnosticado com esclerose múltipla e pensei que seria interessante contar a minha história através de quadrinhos autobiográficos. Publiquei as primeiras páginas de maneira online e foi um sucesso imediato. Nisso a Thais me mandou uma mensagem falando: "Vamos fazer um filme sobre isso!". Eu topei na hora.
Thais Fernandes: O Rafa conta essa história melhor do que eu, porque não lembro o contato específico. Mas lembro que, quando ele lançou oficialmente os quadrinhos do Memórias de um Esclerosado em 2015, eu pensei imediatamente que isso era história de cinema. A gente se conhece há bastante tempo, desde 2005, então mandei mensagem e a gente começou a conversar sobre o projeto. Mandamos a ideia para alguns editais de desenvolvimento e os "nãos" foram bons, porque a gente se obriga a voltar para a ideia e tentar entender o que precisa ser melhorado, o que tem que sair e o que vale seguir teimando em manter.
Um marco importante foi o laboratório de projetos do DOCSP, que a gente participou em 2018 e teve como tutor o cineasta argentino Andrés Di Tella. Várias ideias se alinharam durante o processo desse laboratório, tanto que em 2019 a gente acabou ganhando o edital do Itaú Rumos, que foi o que nos deu a oportunidade de fazer o filme.
Na concepção do filme, houve obras que serviram de inspiração?
Corrêa: Tem dois filmes sobre cartunistas que inspiraram diretamente: Anti-herói Americano (2003), de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, sobre o Harvey Pekar, e A Pé Ele Não Vai Longe (2018), do Gus Van Sant, sobre o John Callahan (que ficou tetraplégico aos 21 anos, após um acidente de carro).
Apesar de ser um documentário, o filme se permite o sonho e a fantasia: a investigação de Rafael sobre seu ado nos leva ao episódio da morte de um sapo, o que pode, via carma, ser a causa de sua doença. Daí o sujeito vestido de sapo que aparece de vez em quando. Gostaria que vocês falassem sobre esse eixo narrativo.
Corrêa: O sapo surge como uma representação da própria doença, um fantasma que me acompanha.
Fernandes: Desde o princípio, a gente tinha a preocupação de não transformar o Memórias de um Esclerosado em um "filme de superação". Porque não é um filme sobre o que o Rafa é, mas sobre o que ele pode ser através da arte. Nosso principal norte sempre foram os quadrinhos, tanto pelo humor ácido com o qual o Rafa trata o assunto, quanto pela autoficção. Nunca quisemos fazer um documentário jornalístico, e uma vez conversando sobre elementos que pudessem quebrar essa leitura sisuda e objetiva do real, o Rafa contou da história do sapo que ele havia matado na infância.
Durante algum tempo, o elemento do sapo foi mais central na narrativa, tanto que o nome do filme originalmente era esse, O Sapo. Mas no processo de montagem, percebemos que não fazia sentido, que Memórias de um Esclerosado é o nome da obra principal, antes do filme, e talvez chamar de outra coisa pudesse perder o foco. No fim das contas, o sapo é personagem, mas é coadjuvante. O centro da narrativa é o Rafa, porque é a partir do trabalho e das memórias dele que o filme existe. E pensando agora, talvez deixar o sapo como protagonista seria também deixar de certa forma a esclerose como narradora principal dessa história, que é justamente o objetivo oposto do filme. Memórias de um Esclerosado é um filme sobre os Rafas que existem, APESAR dela.
Ao mesmo tempo em que há momentos de humor, Memórias de um Esclerosado expõe os desafios diários do protagonista. Vide a sequência de abertura, que observa o árduo e complexo processo de um banho. Gostaria que vocês falassem sobre esse equilíbrio de tom no filme e sobre como decidiram o que mostrariam da rotina privada do Rafael.
Fernandes: Tudo o que está no filme da rotina do Rafa foi acordado previamente. O que a gente foi afinando ao longo do trabalho foram os tempos. Essa cena do banho, por exemplo, era muito mais longa nos primeiros cortes do filme. Percebemos que manter ela no início do filme era importante para entender os tempos do Rafa, que são outros por conta da esclerose.
Mas o que a gente queria era que o desconforto surgisse do esforço do espectador em se adaptar ao tempo do narrador da história, e não do Rafa se sentindo exposto. É uma grande responsabilidade retratar um momento da vida de alguém no cinema, e precisa ter muita coragem para estar na frente da câmera. Porque um filme é só um aspecto, um recorte, um ponto de vista. Um filme não é uma pessoa inteira. Então, ter o Rafa também como diretor foi importante para compartilhar essas tomadas de decisões.
Como tem sido a repercussão do filme junto à comunidade afetada pela esclerose múltipla?
Fernandes: Em quase todas as sessões, alguém com esclerose múltipla ou que convive com alguém que tem a doença compartilha sua história. Muitas pessoas dizem se sentir vistas e representadas no filme. Isso é muito potente: ver que o filme toca de forma tão direta e afetuosa quem vive essa realidade.
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